quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Um conto de Natal moderno: o beijo, o cachorro e o sapato



Creio que milhares de pessoas no planeta já conhecem a estória de Ebenezer Scrooge, escrita pelo inglês Charles Dickens e publicada na semana anterior ao Natal de 1843. O Natal do Sr. Scrooge é um conto natalino que narra a fábula de um homem rico, e de idade avançada, tido como muito avarento, que detestava a época do Natal. Solitário, Scrooge é um personagem que, no papel de patrão, não desejava conceder ao seu melhor funcionário, Bob Cratchit, apenas um dia de folga do trabalho às vésperas natalinas. A sua vida passa a mudar quando, pouco antes da famosa confraternização católica, recebe a visita de um morto, seu finado amigo e sócio, Jacob Marley. Marley volta do além túmulo para relatar ao detestável ancião sobre o que encontrou do outro lado da vida e, arrependido do modo como foi a sua existência terrena, revela ao ex-amigo como salvar a própria alma. O inusitado espectro avisa a Ebenezer que logo ele receberá a visita de três espíritos e que deverá avaliar, a partir dessa manifestação, a sua conduta, já que para ele o fim também se aproximava. Os três fantasmas, um a cada seqüência, se apresentam a Scrooge como materializações dos espíritos natalinos, do passado, do presente e do futuro. A intenção é que Ebenezer Scrooge mude sua postura e dê importância ao valor da solidariedade na época de Natal. É uma obra admirável, principalmente porque nos remete a uma auto-análise sobre nossas próprias posturas perante aos outros.
Em uma visita surpresa a Bagdá, no último domingo, dia 14, o presidente norte-americano George W. Bush foi surpreendido por uma inusitada recepção. Há apenas 37 dias de entregar o cargo ao presidente eleito Barack Obama, o chefe da Casa Branca discursava durante uma coletiva sobre a ocupação militar no país, dizendo que “a guerra foi difícil, mas necessária para proteger os EUA e dar ao Iraque a esperança de um futuro pacífico”, defendendo em seu discurso a invasão do território iraquiano e a derrubada do regime ditatorial do ex-presidente Saddam Hussein. Bush participava de uma cerimônia simbólica de assinatura de um novo pacto de segurança entre EUA e Iraque, quando, no momento em que falava aos jornalistas, ao lado do primeiro-ministro Nuri Al Maliki, um jovem repórter entrou para a posteridade.

“Este é seu beijo de despedida, cachorro!”

Durante a cerimônia que, com certeza, foi a sua última apresentação no território iraquiano como presidente dos Estados Unidos, W. Bush foi interrompido por um par de sapatos oriundos de sua pequena platéia. Imagens de TVs revelaram quando o jornalista Muntazer Al-Zaidi, correspondente do canal de televisão Al-Baghdadia, de propriedade iraquiana e com sede em Cairo, no Egito, se levantou e disse a célebre frase: “este é o seu beijo de despedida, cachorro! Isso é pelas viúvas, pelos órfãos e aqueles que foram mortos no Iraque”, antes de arremessar os sapatos no presidente americano. Contido por seguranças, Al-Zaidi foi detido e provavelmente será processado pela justiça do país por desacato, podendo ser condenado a pelo menos dois anos na prisão se for julgado por insulto a um líder estrangeiro e ao premiê iraquiano, que estava ao lado de Bush no momento do incidente. Segundo relatos, o jornalista foi submetido a exames para detectar a presença de álcool e drogas, podendo ser investigado, ainda, sobre a possibilidade de ter aceitado uma compensação financeira para praticar o ato. Apesar do intuito, George W. Bush não foi atingido pelo calçado, desviando-se comicamente ao abaixar-se e levantar-se como um ator em uma cena pastelão.
Sobre códigos e significâncias, os sapatos podem representar vários sentidos. A crendice popular ocidental confere ao objeto o poder de atrair boas energias e manter o equilíbrio financeiro, social e físico. Diz-se, segundo a superstição, que quando o seu solado está para cima prenuncia, ou está chamando, a morte para o dono. Quando colocado nas janelas durante a noite de Natal, representa um dos locais onde se podem depositar os presentes recebidos. No século XVI, em alguns países europeus, era um símbolo de autoridade. Na cultura árabe, atirar os sapatos em alguém é uma ofensa quase imperdoável, uma atitude de extremo desprezo contra uma pessoa. Significa que ela é menos que um calçado, que fica sempre no chão e sujo. Segundo os costumes iraquianos, mostrar a sola de um sapato equivale a dizer que a pessoa é inferior à sujeira do calçado. Arremessá-los é ainda mais ultrajante. Ser chamado de cachorro piora ainda mais a situação. A imagem de um cão, associada à de um homem, o iguala a um animal que vive perambulando entre a miséria, doenças e morte.
Usar os sapatos como forma de liberdade de expressão pode parecer estranho, ainda mais vindo de um jornalista, mas deve ser compreendido. O fato simboliza a frustração de milhares de iraquianos com a deterioração das condições do país e com a morte de mais de um milhão de civis por causa da invasão americana. O gesto de Zaidi é um retrato amargo da participação dos EUA no Iraque, principalmente quanto à imagem de Bush, considerado um dos presidentes mais impopulares da história americana. É mais um episódio que demonstra a falta de credibilidade e legitimidade das ações aliadas no país. Logo após a prisão de Al Zaidi, milhares de iraquianos foram às ruas exigindo a liberação do repórter. Muitos árabes por todo o Oriente Médio elogiaram o ato e até consideraram a ação como de extrema bravura. Bush ainda tentou minimizar o incidente, dizendo que a atitude do repórter fora um ato isolado e não representa o verdadeiro sentimento do povo iraquiano. Cômico, ainda brincou com a situação, dizendo que o sapato era de número 10, o que equivale ao 42 brasileiro. Em 2003, os iraquianos atacaram da mesma forma a estátua do ex-ditador Saddam Hussein, satisfeitos com a derrubada do regime do antigo governante.
O presidente norte-americano disse que, apesar de Hussein não ter tido participação com os ataques terroristas de 11 de setembro contra os Estados Unidos, a decisão de derrubá-lo não pode ser vista fora do contexto dos ataques. "Num mundo onde terroristas armados apenas com estiletes conseguiram matar quase três mil pessoas, os Estados Unidos tiveram de decidir se poderíamos tolerar um inimigo que agia deliberadamente, que apoiava o terrorismo e que agências de inteligência ao redor do mundo acreditavam ter armas de destruição em massa", disse Bush, referindo-se a relatórios de inteligência que, depois, provaram-se falsos.
A primeira viagem de George W. Bush ao Iraque aconteceu em novembro de 2003, poucos meses depois da invasão liderada pelos EUA, ocorrida em março. Bush ainda voltou ao território iraquiano em 2006 e em 2007, ano em que também se reuniu com algumas lideranças tribais que combatem junto com o governo a rede terrorista Al-Qaeda no país. Atualmente, há cerca de 150 mil soldados americanos no Iraque e 32 mil no Afeganistão. Mais de 4.200 americanos já morreram no conflito e foram gastos aproximadamente US$ 576 bilhões desde o início da invasão. (CS)


Imagem creditada a Associated Press


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quarta-feira, 19 de novembro de 2008

O fenômeno Obama ou como um mestiço conquistou a América


A eleição de um afro-americano para o comando da maior nação bélica do planeta era, há muito pouco tempo, algo tido como improvável, e até mesmo quase impossível de ser aceito por muitos analistas políticos não somente nos EUA, mas em todo o resto do mundo. A escolha de um senador negro para a Casa Branca pode ser considerada um grande passo na luta contra o preconceito racial nos Estados Unidos, colocando uma breve trégua a um apartheid que ainda se mantêm ativo em suas entranhas sociais. Para refletirmos sobre a conquista de Barack Obama frente ao pleito norte-americano, sob a perspectiva de uma conquista racial, vale ressaltarmos a luta anti-segregacionista ocorrida no país durante a década de 1960, movida por Martin Luther King e Malcolm X, além de Huey Newton e Bobby Seale, fundadores do Partido dos Panteras Negras.

Eu tenho um sonho

No dia 28 de agosto de 1963, o pastor e ativista político Martin Luther King Jr. falou de seu sonho para todos os seus concidadãos da América nos degraus do Lincoln Memorial, em Washington, Distrito de Columbia. Naquele dia, com a estátua do ex-presidente Abraham Lincoln servindo de honroso púlpito, Luther King declamou seu discurso de mobilização social pela luta contra o apartheid nos EUA e o respeito aos direitos civis dos negros e das mulheres no país e no mundo, através de um manifesto de não-violência e de amor ao próximo. King considerava que as idéias de desobediência não-violenta, difundidas pelo líder indiano Mahatma Gandhi, aplicavam-se também aos Estados Unidos. Em seus conceitos sobre a idealização de mudanças, afirmava que a realização de protestos pacíficos contra o sistema segregacionista norte-americano, principalmente na parte sul do país, conseguiria atingir um clamor público favorável à causa dos direitos civis da população negra. Mas, esse era um pensamento que nem todos compartilhavam.
Enquanto Martin Luther King acreditava que a resistência pacífica agiria como uma arma contrária ao racismo e a segregação, Malcolm Little, um dos principais defensores dos direitos dos negros no país, defendia a separação das raças, a independência econômica e a criação de um Estado autônomo para os negros. Segundo ele, a questão negra não era apenas uma questão social, mas sim uma questão política, civil e econômica. Sua aproximação com os ideais socialistas o levou a perceber que a questão do negro americano passava pela estrutura opressora do capitalismo. Através dessa nova forma de interpretação do cotidiano social norte-americano, Malcolm X idealizou a Organização da Unidade Afro-Americana, uma entidade focada nos problemas das minorias sociais da população dos Estados Unidos. A sua opção pelo assistencialismo e pela violência foi de grande relevância para o surgimento de importantes movimentos no fim da década de 1960, como a criação do Partido dos Panteras Negras. Little ponderava que a violência não poderia ser interpretada como um ato de barbárie, mas como um meio legítimo de conquistas, reafirmando em seus discursos que todas as mudanças históricas da humanidade se deram através dela. A violência proposta por Malcolm X era, portanto, um método de transformação e não uma agressão gratuita.
O Partido Pantera Negra para Auto-Defesa, mais tarde Partido Panteras Negras, foi fundado na cidade de Oakland, na Califórnia, por Huey Newton e Bobby Seale, no ano de 1966. No início de suas atividades, o idealismo político dos Panteras consistia em promover patrulhas pelos guetos negros oferecendo proteção aos moradores contra os atos de brutalidade praticados pela polícia nos subúrbios. Logo mais, além dessa ‘proteção’, o grupo passou a reivindicar a isenção do pagamento de quaisquer tributos pelos negros e exigiam outros direitos contrários à igualdade de convivência social, tornando tais pedidos arbitrários e impossíveis de serem aceitos. Uma ala mais radical do partido defendia a luta armada a favor dessas exigências. Os conflitos entre membros dos Panteras Negras e a polícia nas décadas de 1960 e 1970 provocaram várias mortes, incluindo a prisão de Newton sob a acusação de ter assassinado um policial. A violência causada pelo conflito gerou uma hostilização ainda maior por parte da polícia com relação aos negros e aos Panteras. Em meados da década de 1970, já sem a total simpatia de vários líderes negros e com muitos de seus membros presos, o Partido dos Panteras Negras abandonou a violência por uma política convencional de prestação de serviços sociais nas comunidades negras americanas.
Todo esse idealismo igualitário para uma equiparação racial entre negros e brancos, sonhado pelos muitos ativistas que participaram daquela época, foram concretizados com o resultado das urnas nas últimas eleições. A escolha do senador de Illinois, Barack Obama, como presidente dos Estados Unidos, e o primeiro negro a sentar na cadeira que pertenceu a George Washington, tem uma significação, em especial, devido à segregação de cor que sempre predominou no território norte-americano.

Onde a cor influenciou na disputa?

Se você parar para rever alguns artigos e vídeos veiculados ao candidato Obama, enquanto transcorriam os meses antes das eleições, poderá observar que em momento algum ele usa o artifício de ser negro para pedir votos. Ao contrário, ao deixar que os outros agregassem significados raciais para a sua candidatura, o senador se isentou de comentar assuntos relativos à luta pela igualdade dos negros no país. A estratégia de campanha de Barack Obama, nesse caso em específico de ser um candidato que está desafiando a história, foi colocar-se como uma figura que nega a história, que ignora tabus pré-estereotipados. O intuito foi, durante todo o tempo, retirar o estigma de um candidato negro que concorria à Casa Branca, mas não rejeitando o apoio daqueles que viam nisso uma vitória racial. Uma boa jogada de marketing da equipe de campanha foi a data escolhida para um dos discursos mais importantes de sua candidatura - 28 de agosto -, ocorrida em Denver, no estado do Colorado, coincidindo com o 45º aniversário do discurso “I have a dream”, de Martin Luther King. A alusão à data tornou o evento uma comparação não assumida, mas induzida a uma correlação entre ambos os líderes.
Outra confirmação de que Obama manteve afastado o estereótipo de negro pode ser observado no discurso de comemoração por sua indicação para concorrer à presidência pelo Partido Democrata, derrotando a senadora por Nova York, Hillary Clinton. Em seu pronunciamento, não há menção sobre sua raça, apenas uma dedicatória à sua avó. O mesmo aconteceu no seu discurso após a vitória sobre o republicano John McCain. “Se pessoas ainda têm dúvidas de que a América é o lugar onde as coisas são possíveis, que ainda acreditam que os sonhos dos nossos fundadores ainda estão vivos, se ainda questionam o poder da nossa democracia, esta noite é a sua resposta”. Não há nada que o vincule, novamente através de seus agradecimentos, sobre ter sido apoiado, ou eleito, por uma bandeira ideológica consolidada à sua condição de negro. Ao contrário, em um país onde somente 12% da população são negras, seria um desastre utilizar essa estratégia como lema de campanha para alcançar a aprovação do seu nome como o representante máximo do Estado.

O que ocorreu então?

Embora a vitória de Obama traga um simbolismo histórico a uma nação marcada pelo preconceito racial, a eleição de um democrata não surpreende. Devido ao processo de recessão e a grave crise financeira no país, as chances do Partido Republicano diminuíram bastante, tornando quase remotas a continuidade através de mais um mandato. Grande parte da derrota republicana deve-se aos baixos índices de popularidade do presidente George Walker Bush. Os eleitores culpam a Presidência pela crise instaurada e não pensam no governo como um conjunto político. Esse fato impulsionou a escolha por Obama em muitos estados vencidos por Bush em 2004.
Superficialmente, o candidato derrotado John McCain parecia ter todos os requisitos para conseguir a cadeira presidencial: é detentor de uma boa experiência política, reconhecido por ‘bravura e heroísmo’ durante a Guerra do Vietnã e conhecedor de política internacional. Seu adversário à Casa Branca era apenas um político inexperiente e quase desconhecido senador negro do estado de Illinois. Até a essa análise, as chances de Obama eram quase improváveis, mas vários fatores prejudicaram a campanha de McCain. O primeiro, e talvez o maior deles, foi conseguir arrecadar dinheiro para competir com os US$ 650 milhões arrecadados por Obama. Por ter aceitado verbas federais - ajuda que Barack Obama dispensou - o republicano limitou o gasto máximo de sua campanha em “míseros” US$ 85 milhões. O Comitê Nacional Republicano, incluindo alguns grupos pró-John McCain, gastaram bem mais do que isso. A habilidade de Obama em se apresentar nos canais de televisão também influenciou na derrota do candidato que, para piorar, tinha dinheiro necessário para forçar McCain a gastar em Estados que, teoricamente, eram republicanos. Com a verba reduzida, o veterano pouco pode fazer para reverter o quadro de derrota que se instaurava cada vez mais sobre a sua candidatura. Outra dificuldade enfrentada por McCain foi tentar se distanciar da imagem negativa do governo de George W. Bush sem rejeitar explicitamente o seu apoio. Como a maioria dos republicanos mais leais, manteve a sua solidariedade a Bush alegando apenas que seria um presidente diferente. Essa alegação foi colocada várias vezes por Obama nos debates que aconteceram pelo país, relacionando o fato a um continuísmo do atual governo. Outro fator que prejudicou a candidatura de John McCain à presidência foi a fragilidade política de sua vice, a governadora do Alaska, Sarah Palin. Sua indicação foi uma grande aposta para acalmar a ala direita do partido, formada em sua maioria pela bancada evangélica, que não foi tão simpatizante com a escolha de McCain como o candidato representante do partido para a corrida presidencial. A escolha de Palin como companheira de chapa, sem ao menos a candidata possuir um know-how nacional ou internacional que a qualificasse para o cargo, também foi argumentado pelos democratas como fator de fragilidade política dos republicanos. Nas poucas entrevistas que deu, Sarah Palin deixou claro que não entendia de questões de política internacional com a mesma profundidade que qualquer um de seus adversários. Na verdade, John McCain não conseguiu manter uma linha de coerência em seu discurso político, passando de herói de guerra a profundo conhecedor da política e mais tarde alterando-o para um candidato dissidente do modo de governo implantado por Bush. Em toda a campanha, ele em nenhum momento conseguiu abalar a candidatura democrata. Foram perceptíveis, em alguns debates televisivos, o autocontrole de McCain para conter um semblante sereno quando atacado por Obama. Talvez essa falsa característica para um ex-combatente de guerra tenha gerado uma cobertura negativa da imagem do candidato entre os eleitores que acreditavam na força de um super-homem.
Em uma análise final, a candidatura de John McCain à Casa Branca projetava a figura de um homem voltado ao saudosismo dos bons tempos republicanos nos Estados Unidos, de um cidadão público que passou por muita coisa e serviu bem ao seu país. Mas, para uma nação decepcionada com o regime republicano, e o apelo de um adversário mais jovem com uma mensagem de mudanças na postura administrativa americana, foram inimigos que McCain não conseguiu vencer durante esta que, talvez, tenha sido a sua última grande batalha. (CS)



Imagem creditada a Associated Press


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terça-feira, 4 de novembro de 2008

A sucessão presidencial passa por Minas


“O primeiro juízo que se faz da mente de um príncipe é observar os homens que ele tem a seu lado. Quando eles são capazes e fiéis, podemos considerá-lo sábio, porque soube reconhecê-los suficientemente e mantê-los fiéis; quando, porém, não forem assim, pode-se fazer mau juízo dele, pois o primeiro erro que comete é o desta escolha”.
Observando as palavras do escritor italiano Nicolau Maquiavel, proferidas no distante século XVI, as alianças que se constroem dentro do jogo político são a base do sucesso ou da ruína de qualquer postulante a um cargo governamental. Porém, uma ressalva plausível de ser comentada, em se tratando de atitudes políticas, é quanto ao seu inimigo partidário se tornar o seu principal aliado para a conquista de um projeto ainda maior de dominação e poder. Isso para ambos. O melhor cenário para essa referência analítica foi as eleições municipais de 2008 em Belo Horizonte e a polêmica aliança entre o atual prefeito Fernando Pimentel (PT-MG) e o governador Aécio Neves (PSDB-MG), em prol da candidatura do socialista Márcio Lacerda (PSB-MG). A união petista e tucana provocou um racha nas bases aliadas ao alcaide, inclusive com longos debates sobre a legalidade dessa parceria pelos membros da executiva nacional do Partido dos Trabalhadores. O resultado da insatisfação com a atitude de Fernando Pimentel foi o lançamento da candidatura da deputada federal Jô Moraes (PCdoB-MG), ex-aliada política e apoiada por dissidentes petistas, como opção contrária ao acordo entre o prefeito e o governador. Não é nenhuma novidade que toda essa articulação visa exclusivamente as próximas eleições do pleito de 2010.
O acordo deu-se da seguinte forma: o empresário Márcio Lacerda é um ilustre desconhecido da maioria da população belo horizontina, apesar de ter ocupado cargos de relevância nos governos Lula e Aécio Neves. Mesmo com o apadrinhamento e o apoio de peso do prefeito e do governador, Lacerda iniciou o primeiro turno como o terceiro colocado em uma disputa com nove concorrentes. Com o início das propagandas eleitorais no rádio e na televisão, o candidato da aliança alcançou o primeiro lugar, mas não conseguiu decidir a eleição já no primeiro turno. Ataques constantes de seus adversários, principalmente da candidata Jô Moraes, fêz-lo disputar o segundo turno com o peemedebista Leonardo Quintão. O deputado federal, a propósito, conquistou a simpatia do eleitorado com uma campanha popularista de proximidade com o cidadão, priorizando o contato direto com o público através de caminhadas e de um discurso simplista de como gerenciar a cidade. Durante as semanas que precederam à segunda votação, os candidatos mantiveram as trocas de acusações e pouco se falou das propostas para o município. Apesar de, inicialmente, as pesquisas divulgadas pelo Instituto Ibope apresentarem uma vantagem de aproximadamente 30% de diferença a favor do candidato do PMDB, o aspirante a prefeito não conseguiu manter a liderança estabelecida. A chapa de Márcio Lacerda, tendo o petista Roberto Carvalho como vice, foi eleita com 767.332 votos, ou 59,12% dos válidos, e Leonardo Quintão, junto com o seu vice Eros Biondini, obtiveram 530.560 adesões a suas propostas políticas.
Dentre as promessas de Márcio Lacerda para a sua gestão municipal encontram-se a construção de um hospital metropolitano na região do Barreiro, a criação de dez mil novas moradias em vilas e favelas, a expansão da capacidade do metrô dos atuais 150 mil para 800 mil passageiros/dia, a construção de 12 escolas de ensino fundamental e a ampliação de outras seis, a implantação de 100 novos postos de acesso à internet na capital, além de outros compromissos acordados com a população. Para isso, Lacerda conta com o apoio de uma bancada de 34 vereadores dentre os 41 que exercerão o mandato eletivo para os próximos quatro anos. Para o futuro prefeito, a manutenção da governabilidade de seu mandato passa pelo equilíbrio nas relações entre o executivo e o legislativo e será a base principal para alavancar o real projeto por trás de sua candidatura.
Aliás, a vitória de Márcio Lacerda, apesar de toda ajuda política que recebeu, foi um mérito próprio de seu esforço em conquistar os votos dos indecisos e dos eleitores descrentes da sua pessoa. Dois fatores foram fundamentais para as mudanças nas intenções de voto: com o quase empate técnico no primeiro turno, Lacerda foi obrigado a buscar o apoio popular para promover uma restauração da sua imagem pública, atacada duramente pelos candidatos concorrentes que o denunciavam sobre uma possível participação no caso do Mensalão. Certo de que o apoio recebido até então do governador e do prefeito não faria diferença para uma possível transferência de votos, Lacerda tentou reverter o quadro através de um corpo a corpo com o eleitorado, apesar das dificuldades em manter um relacionamento com o cidadão que, desconfiado, ainda não havia decidido pela aceitação do candidato. Outro fator importante para a ascensão de sua candidatura foi a falta de competência do candidato Leonardo Quintão em administrar a vantagem obtida no primeiro turno. Um dos erros de Quintão foi não manter uma postura oposicionista nem ao prefeito e nem ao governador, o que agradaria aos eleitores que discordavam da aliança. Contrariando alguns de seus coordenadores que insistiam em uma posição mais clara e mais firme na sua atitude política, o deputado federal adotou em boa parte de sua campanha um discurso de elogios tanto para um, quanto para o outro, afirmando sempre que possível, a sua pretensão de ser mais um parceiro do presidente Lula. Além do mais, Leonardo Quintão, atualmente com 33 anos de idade, aumentou a sua fragilidade política ao adotar um linguajar cheio de equívocos gramaticais diante das câmeras de televisão, incluindo um modo quase infantil ao expressar suas idéias e projetos administrativos para a cidade. Esse engodo o transformou em motivo de deboche na internet, além de diminuir circunstancialmente as suas chances de vitória durante o segundo turno. Não querendo cometer ou ser vítima de um erro histórico, boa parte da população optou por Márcio Lacerda como sendo o mais capacitado para administrar a capital mineira.

Vencedores X Derrotados

Alguns nomes de peso nacional estiveram envolvidos nas coligações que concorreram à composição da Câmara Municipal e à Prefeitura de Belo Horizonte para 2009. O desgaste nas relações políticas entre o prefeito Pimentel e a sua antiga base, em referência à ala esquerdista que não concordou com a aliança, favoreceu o crescimento do PMDB como alternativa para os que foram derrotados no primeiro turno.
Pelo lado da situação, a coligação formada pela aliança política entre a cidade e o estado contou com a participação do governador Aécio Neves, do prefeito Fernando Pimentel, dos deputados federais Virgílio Guimarães e Miguel Côrrea Júnior, além da base aliada de vereadores que formam a bancada de apoio.
Pelo lado democrata, estiveram presentes os ministros Hélio Costa (PMDB-MG), Patrus Ananias (PT-MG), Luiz Dulci (PT-MG), o vice-presidente da República José Alencar, além da candidata derrotada Jô Moraes incluindo o delegado regional do Ministério do Desenvolvimento Agrário, o ex-deputado Rogério Côrrea.
Indiscutivelmente, os maiores vencedores deste embate nas urnas foram o governador Aécio Neves e o prefeito Fernando Pimentel. Articuladores ideológicos da união entre tucanos e petistas, ambos conseguiram emplacar a candidatura de Márcio Lacerda apoiado por uma união entre partidos rivais no segundo maior colégio eleitoral do país. Apesar da vitória em Minas, uma mesma aliança em nível nacional é um fato quase impossível de ser realizado. Mesmo saindo fortalecidos da disputa, a conquista da prefeitura municipal apenas no segundo turno frustra as pretensões de Aécio Neves em fortalecer a sua candidatura à presidência da república pelo PSDB, o mesmo ocorrendo com Fernando Pimentel na disputa pelo Palácio da Liberdade. Para o prefeito, a situação é um pouco mais difícil. Para se eleger governador em 2010, Pimentel terá que cicatrizar as feridas deixadas dentro PT mineiro após a coligação com o governador, além de disputar a vaga com outros nomes importantes do partido e fora dele. A reaproximação com o ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Patrus Ananias, e com o chefe da secretaria-geral da Presidência, ministro Luiz Dulci, será de extrema importância para Pimentel consolidar o seu nome na disputa pela indicação ao governo do Estado. No caso de Aécio Neves, o seu maior oponente será o governador de São Paulo, José Serra. Aliás, ambos foram criticados por fazerem alianças contrárias à orientação do PSDB.
No cenário paulista, o governador José Serra sustentou seu apoio partidário de forma um pouco distante do candidato Geraldo Alckmin, mantendo-se tímido na campanha tucana à prefeitura. Ao contrário, no segundo turno, teve participação efetiva na defesa do atual prefeito Gilberto Kassab (DEM-SP). A derrota da candidata Marta Suplicy (PT-SP) deu a José Serra o maior colégio eleitoral do Brasil e, mantendo-se uma possível aliança com os Democratas, o governador é um fortíssimo candidato a indicação do partido para ser cabeça de chapa na sucessão do presidente Lula. A diferença entre as alianças tucanas pode ser explicada assim: em Minas, Aécio Neves procurou a aproximação com seus adversários políticos enquanto que, em São Paulo, José Serra tentou resgatar amizades com antigos aliados.
Sobre os derrotados, além do candidato Leonardo Quintão, outros importantes políticos tiveram seus sonhos frustrados pelas urnas. A candidata Jô Moraes foi derrotada duas vezes: em primeiro turno, quando ficou em terceiro lugar na disputa e no segundo, ao dar seu apoio ao peemedebista mesmo sem o consenso do seu partido. O ministro Patrus Ananias foi um dos principais críticos à aliança com os tucanos dentro do partido. Como não conseguiu evitá-la e ainda com o insucesso da candidata do PCdoB para alcançar a prefeitura, decidiu não apoiar nenhum candidato. Assim também ocorreu com o ministro Luiz Dulci. O vice-presidente José Alencar não conseguiu transferir votos para o candidato Leonardo Quintão, passando quase que despercebida a sua participação na campanha peemedebista. Mas, o maior derrotado nessa corrida para o Palácio da Liberdade foi o ministro Hélio Costa. Com a derrota de seu candidato, Costa viu suas chances diminuírem para uma disputa mais acirrada com os outros candidatos ao governo de Minas. O ministro confiava em uma vitória em Belo Horizonte para construir a sua candidatura ao governo do estado. Um trunfo que pode favorecer o futuro candidato nas próximas eleições é o fato de que o seu partido, o PMDB, possuir as maiores bancadas no Senado e na Câmara, além de ter saído fortalecido nacionalmente no último pleito municipal.
A importância de Minas e São Paulo no cenário político nacional é a grande cartada que o PSDB guardará em suas mãos para 2010. Com o sucesso das alianças tecidas por Aécio e Serra, o presidente Luiz Inácio terá dificuldades em validar o nome da ministra Dilma Rousseff para sucedê-lo no Planalto. Para obter êxito em seu projeto, Lula terá que conseguir o apoio em três estados estratégicos para manter a governabilidade no caso de uma possível vitória da ministra. Sendo assim, tende a aliar-se aos peemedebistas, já que o partido possui uma grande representatividade no cenário nacional. No Rio de Janeiro, o presidente deverá apoiar um nome que seja candidato pelo PMDB, podendo ser o atual governador Sérgio Cabral, que também teve o seu nome comentado como vice na chapa petista. Em Minas, Lula desejaria a cabeça de chapa. Os mais indicados são o prefeito Fernando Pimentel e o ministro Patrus Ananias mas, devido a uma possível reivindicação do PMDB por uma coligação no estado, o ministro Hélio Costa também pode ser considerado como um nome forte para 2010. Em São Paulo, a situação se repete, com uma propensão a uma aliança PT/PMDB. Essa colcha de retalhos, com emendas e costuras ainda a serem produzidas, fará parte, daqui para frente, do cotidiano político e das manchetes jornalísticas para os próximos dois anos. (CS)

Fotografia: Claudinei Souza

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segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Trânsito será o grande dilema para a próxima administração


Considerado um dos maiores problemas da administração pública, o sistema de trânsito das grandes capitais tem sido o assunto principal de vários encontros por todo o país. Os discursos debatem sobre as dificuldades para a manutenção do sistema viário e as possíveis soluções que podem ser utilizadas para um melhor fluxo nos principais centros, além de melhorias no acesso da população aos pontos comerciais.
Em Belo Horizonte, técnicos da prefeitura prevêem que o trânsito da cidade tende a ficar mais crítico em alguns dos principais corredores, caso não haja intervenções nestes locais. Segundo dados divulgados pelo Detran-MG, a frota de veículos na capital supera um milhão de emplacamentos. Grande parte desse problema pode ser atribuído às campanhas comerciais e às facilidades propostas para o financiamento na compra de veículos. Os descontos e promoções mirabolantes induzem o consumidor à valorização do transporte particular, aumentando o número de congestionamentos na cidade. Outro fator prejudicial relacionado ao caos do trânsito é a infra-estrutura das vias públicas. Apesar das melhorias, Belo Horizonte ainda registra altos índices de engarrafamentos e lentidões, principalmente em sua área central. A criação de novas malhas de circulação que evitem esse problema requer não somente liberações políticas, mas necessita de um plano de ação que abriga projetos e desocupações de moradores, fato muitas vezes prejudicial aos que deixam suas casas. Outra grande dificuldade enfrentada pela prefeitura são os locais para o estacionamento no centro da capital. Com o constante crescimento do número de veículos nas ruas, o pedestre passou a dividir os poucos espaços nos passeios com uma barreira de carros e motocicletas o envolvendo nas calçadas. Tudo regulamentado por placas e fiscalizado pelos agentes da Bhtrans.
Segundo o Governo Federal, a política de mobilidade urbana sustentável deve ser praticada como um conjunto de ações que visa proporcionar o acesso amplo e democrático aos espaços urbanos, priorizando a redução de impactos ambientais e sociais. Para que parte disso ocorra em Belo Horizonte, algumas mudanças comportamentais deverão ser aplicadas futuramente no cotidiano da cidade. Uma dessas possíveis alterações será, caso não haja uma mudança realmente significativa que atenda o sistema viário urbano, a implantação do rodízio de veículos no trânsito da capital. Talvez esse seja um sistema de deslocamento no transporte que será quase inevitável aos grandes centros populacionais do país. Criado em outubro de 2007 pela prefeitura de São Paulo, o revezamento foi implantado inicialmente para melhorar a qualidade do ar na capital paulista. A idéia era diminuir a poluição atmosférica durante o inverno, quando o ar fica mais seco, através da redução do número de veículos em circulação.
Mesmo com esses investimentos na construção e revitalização de ruas e avenidas, Belo Horizonte necessita de novas formas de transporte, além de um maior controle sobre a emissão de gás carbônico na atmosfera, proveniente da combustão nos motores dos veículos. Assim como em outras cidades do mundo, o uso da bicicleta poderá ser uma solução para o trânsito na capital. A criação de ciclovias interligando alguns bairros, além de compartilhar com a política de mobilidade urbana sustentável, é uma alternativa viável para a diminuição do fluxo de veículos nas ruas. É necessário apenas o envolvimento da população em uma campanha de conscientização sobre o futuro do trânsito na capital.
A mudança no Código Brasileiro de Trânsito (CBT) que proíbe o uso de bebida alcoólica, determinando a tolerância zero no trânsito, favoreceu na diminuição de veículos nos finais de semana, principalmente nas áreas dos bares e restaurantes de Belo Horizonte. O problema é um aumento no uso de solicitações de táxis pela população provocando esperas superiores a 30 minutos. Outra proposta para a retirada de veículos no trânsito é a diminuição do valor das tarifas de ônibus, incentivando o uso do transporte coletivo.
Todos esses problemas deverão ser administrados pela próxima gestão da prefeitura de Belo Horizonte, vencida pelo socialista Márcio Lacerda (PSB) no último pleito eleitoral. Aliás, sobre Lacerda, devemos ressaltar que a sua candidatura foi baseada em um acordo político firmado entre o governador Aécio Neves (PSDB) e o atual prefeito Fernando Pimentel (PT), visando as próximas eleições de 2010 (CS).

Fotografia: Claudinei Souza

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Edson Luís e o Calabouço ou o estudo de um mártir a partir de sua significância quanto corpo


Sobre o ano de 1968, este foi marcado pelos movimentos estudantis em todo mundo. As autoridades buscavam conter os vários protestos dos estudantes através do uso da força e de mecanismos de repressão. No Brasil, o governo manteve uma linha dura com punições, cassações, suspensão de direitos políticos, prisões, espancamentos, torturas, desaparecimentos e ocultação de cadáveres, exílio e várias outras atrocidades contra o direito civil. Durante a Guerra Fria havia uma enorme indução norte-americana sobre a sociedade brasileira. Essa influência foi percebida em diversas áreas das esferas sociais, como na música, cinema, na alimentação e no estilo de vida de alguns brasileiros. Mas foi na educação que a ingerência dos Estados Unidos acabou por provocar os estudantes universitários, liderados pelo diretório estudantil da UNE. Segundo os dirigentes da União Nacional dos Estudantes, na época, o governo brasileiro tinha a intenção de modificar, gradativamente, todas as universidades federais em regime de fundação. Essas mudanças foram impostas pela Agência de Desenvolvimento dos Estados Unidos (USAID) em cumprimento aos acordos feitos pelo Brasil com a agência. A não concordância com o que fora acertado pelo Ministério da Educação e Cultura e o órgão norte-americano foi a principal reivindicação dos estudantes naquele momento. Após o golpe, o novo governo instaurado pelos militares promulgou uma lei com o objetivo de sufocar qualquer manifestação estudantil. A "Lei Suplicy", do então Ministro da Educação Flávio Suplicy de Lacerda, proibia a participação dos estudantes em questões políticas, suprimindo a liberdade de organização. Na tentativa de manter o controle sobre as ações dos estudantes, a polícia não hesitava em agir com autoritarismo e violência.
Em março de 1968, a polícia invadiu o restaurante do Calabouço no Rio de Janeiro. O restaurante era mantido pelo Governo para atender estudantes carentes e, naquele dia, um pequeno grupo de estudantes preparava um protesto contra as más condições em que se encontrava o local. Durante a operação, ocorreu um princípio de tumulto entre a polícia e os manifestantes. O estudante do ensino médio Edson Luis Lima Souto, de 18 anos, morreu vítima de um tiro disparado pela polícia. No enterro de Souto, aproximadamente 50.000 pessoas se concentraram em frente à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. A urna, coberta com a bandeira do Brasil, saiu em cortejo pelas ruas da cidade em meio a um clima de revolta que se expandiu pelo resto do país.
Rememorando quatro décadas após a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, uma parceria entre a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, a Prefeitura do Rio de Janeiro, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) inauguraram uma estátua na Praça Ana Amélia, entre a Avenida Churchill e a Rua Santa Luzia, em homenagem ao estudante morto no período da ditadura militar. O jovem Edson foi o primeiro estudante morto de uma seqüência de várias outras vítimas da repressão no Brasil. A sua morte desencadeou um processo de comoção nacional e repúdio à forma truculenta como ocorreu o fato. O mito a ser desconstruído é o uso da imagem do aluno como mártir e a significância da sua morte para a sociedade.

O caso Edson Luís

Paraense nascido em Belém, Edson Luís mudou-se para o Rio de Janeiro para cursar o antigo segundo grau no Instituto Cooperativo de Ensino. A escola funcionava nas dependências do Complexo do Calabouço que, além do restaurante onde ocorreu o homicídio, possuía um teatro e uma policlínica. Ao seu redor funcionavam um pequeno comércio de prestação de serviços, com barbearias, alfaiates e lavanderias. De família humilde, o jovem aluno participava naquele fatídico dia 28 de março de 1968 de uma manifestação contra as condições de funcionamento do restaurante. Segundo ex-integrantes da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço, Edson Luís estava distante de ser uma liderança no movimento estudantil. Era apenas um rapaz que falava pouco e colaborava na fabricação de cartazes para a manifestação daquele dia. Um garoto que sonhava cursar a universidade e proporcionar uma vida melhor para a sua família.
O Restaurante Central dos Estudantes foi inaugurado em 1951 na antiga sede da UNE na Praia do Flamengo, mas encerrou os seus dias em um endereço próximo ao Aeroporto Santos Dumont. Era vinculado à Divisão Extra-Escolar do Ministério da Educação e ao Serviço de Alimentação de Previdência Social e administrado pela União Metropolitana dos Estudantes (UME). O nome sub-social é uma alusão à possibilidade de que naquele local tenha existido uma prisão para escravos, além de uma menção ficcional de um lugar marginalizado dentro de um sistema opressor. O Calabouço era um restaurante estudantil que oferecia refeições a baixo custo para estudantes carentes do Rio de Janeiro. Proporcionando diariamente um grande fluxo de pessoas, o local foi palco de manifestos e pedidos de melhorias na educação escolar do país. Algumas dessas intervenções criticavam diretamente o regime político implantado pelo novo governo e as restrições impostas ao movimento estudantil.
No dia 28 de março, um grupo de estudantes organizava uma passeata que deveria sair do restaurante do Calabouço em protesto a qualidade da comida e ao aumento no valor da refeição. A manifestação deveria ocorrer no fim da tarde, mas logo foi dispersa pela ação da polícia. Durante esse primeiro confronto, alguns alunos se esconderam nas dependências do restaurante e tentavam revidar contra-atacando com pedaços de paus e pedras. A inesperada retaliação forçou o efetivo policial a recuar para poder traçar uma nova formação para controlar o tumulto. A rua ficou propriamente deserta em meio a uma angustiante paz aparente. Iniciou-se novamente o conflito quando tiros foram disparados próximos ao Edifício da Legião Brasileira de Assistência. Os policiais, temendo que estudantes atacassem a embaixada norte-americana, resolveram invadir o Complexo do Calabouço e acabar de vez com aquela situação que se tornava fora de controle. Testemunhas afirmaram aos jornais da época que Edson Luís acabara de jantar e de que segurava uma bandeja nas mãos quando foi atingido por um golpe de cassetete no ombro. Durante a invasão, o comandante da tropa que fez a incursão no Complexo, Aloísio Raposo, teria sido ferido com uma pedrada e revidou atirando contra os seus agressores, atingindo o estudante com um único tiro certeiro no peito. Outros disparos foram ouvidos e mais pessoas feridas foram socorridas em hospitais, mas Edson morreu na hora. Poderia ser qualquer um, mas foi dado a ele a glória de morrer como mártir de um motim, já que o movimento não mudou em nada a situação do restaurante a não ser declarar definitivamente o seu fechamento e desencadear uma ação mais enérgica do regime contra o movimento estudantil.
O impacto de um corpo dentro daquele universo caótico de sentidos ideológicos foi a nova oportunidade oferecida a sociedade estudantil de reivindicar algo contra o sistema, de ter uma nova bandeira para lutar mesmo contra um oponente que o representa federativamente e, numericamente e belicosamente, muito superior às possibilidades de defesa que poderiam idealizar. A luta entre Davi e Golias desta vez deu-se pela lógica: venceu o gigante.
Várias foram as manifestações populares em todo o país cultuando o novo símbolo da resistência estudantil: o corpo de um adolescente que saiu de casa para iniciar uma nova etapa em sua vida; que trabalhava e estudava na esperança de ajudar a mãe a viver melhor. Edson Luís nunca teve a menor identificação de um líder nato ou posicionava-se como um. Nunca quis ser um herói, ainda mais desses que são criados a partir da extinção de sua pessoa. Era apenas mais um garoto que buscava melhorar sua condição social através da obtenção de reconhecimentos educacionais. Apenas mais um estudante dentre os milhares de alunos que freqüentavam o restaurante do Calabouço. Após a constatação de um cadáver, a espetacularização da vida tomou forma com o surgimento de novos personagens que manipulariam aquele episódio. Todos queriam demonstrar o seu repúdio contra o assassinato de um jovem estudante, indiferente se o conheciam ou não. A morte de Edson Luís foi o primeiro incidente que sensibilizou a opinião pública para a luta estudantil.

O decorrer dos dias

Temendo que a polícia desaparecesse com o corpo do estudante baleado, os manifestantes não permitiram que ele fosse retirado para o Instituto Médico Legal e o carregaram em passeata para a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, onde o artefato fúnebre foi velado. A própria necropsia foi realizada no local sob o cerco armado da Polícia Militar e de agentes do DOPS, e o seu atestado de óbito emitido ali mesmo. No período que compreendeu o velório e a missa de ressurreição promovida na Igreja da Candelária, várias manifestações foram realizadas pelo país. Propriamente o Estado do Rio de Janeiro parou no dia do sepultamento. Os cinemas localizados na Cinelândia anunciavam três exibições com títulos alusivos ao fato: A noite dos generais, À queima-roupa e Coração de Luto. Centenas de cartazes foram colados com frases de insurgência, tais como: “Mataram um estudante!” E se fosse o seu filho?” ou “Os velhos no poder e os jovens no caixão!”. Edson Luís foi enterrado como um mártir ao som do hino nacional brasileiro, homenageado quase como um ex-combatente de guerra, desses que morrem defendendo o seu país das forças opressoras que o sufocam.
O clima ainda tenso permaneceu até o dia 2 de abril, quando foi realizada uma celebração pela morte do estudante na Candelária. Ao fim da cerimônia, ocorrida durante a manhã, as pessoas que deixavam o recinto foram surpreendidas pela Cavalaria da Polícia, cercadas e atacadas a golpes de sabres e cassetetes. Várias ficaram feridas e algumas detidas pela corporação. Uma outra missa estava marcada para ser celebrada no mesmo dia, porém os militares haviam determinado a sua proibição e se posicionaram para reprimi-la sob qualquer forma. Do lado de fora da Matriz foram mantidas três fileiras de soldados a cavalo, mais o apoio do Corpo de Fuzileiros Navais e vários agentes do DOPS.
Apesar de não terem se envolvidos diretamente até aquele momento, alguns padres resolveram intervir em prol de seus fiéis. Sem temer uma retaliação futura, o vigário-geral do Rio de Janeiro, Dom Castro Pinto, se negou a proibir a realização da missa noturna. Esperando uma nova investida militar contra a população presente ao término da celebração, um ato de extrema bravura e coragem foi tomado pelos párocos presentes à cerimônia. Posicionando-se em duas correntes mantidas apenas pelas mãos dadas, formaram um enorme corredor por onde passaram os quase 600 fiéis que foram ao ato religioso. Os padres mantiveram-se presentes na Rua Rio Branco até que o último fiel passasse, sob os olhares conturbados dos policiais. Apesar do esforço, foi inevitável um novo confronto nas imediações da Cinelândia entre manifestantes e os cavalarianos.
A morte do estudante ainda gerou uma grande passeata no Rio de Janeiro, em 26 de junho. A Passeata dos Cem Mil no centro da cidade, mais especificamente na Cinelândia, foi a maior e mais importante manifestação de protesto ocorrida no país desde a instalação do regime ditatorial no Brasil. Promovida pelo movimento estudantil, a marcha contou com a presença de intelectuais, artistas, operários e grande parte da população carioca. Suas principais reivindicações foram o restabelecimento das liberdades democráticas, a suspensão da censura à imprensa e um maior apoio ao desenvolvimento da educação no país.

A necessidade de se criar mártires

Você já reparou quantas estátuas e monumentos existem espalhados pelo país? Já procurou saber sobre quem foi aquele personagem esculpido e mantido ali, parado, em uma praça no qual você nem retém o seu tempo de parar ou mesmo contemplá-lo através de um breve olhar? Já pensou porque somos árduos patrióticos ao defender o nome de nosso país em qualquer esporte ou situações que remetam a uma imagem positiva, mas totalmente carentes de um regime político que realmente igualasse as condições de sobrevivência de cada um de nós, nascidos ou não nessa nação?
Vamos ponderar que um instrumento clássico para legitimar um regime político é a ideologia e a justificação racional da organização do poder. Como ponto de partida, voltaremos a um período posterior a saída de Dom Pedro II do Brasil. Com a proclamação da República, três correntes filosóficas disputavam a definição ideológica de governo para o novo regime que se instaurava com o fim da monarquia. Existiam os defensores do liberalismo à americana, os jacobinos à francesa e os positivistas. Durante algum tempo, as três ideologias se combateram nos anos que procederam ao início do processo de transição política no Brasil. Acabou prevalecendo a ideologia de uma nação mantida sob um regime liberalista de governo: uma sociedade composta por indivíduos autônomos cujos interesses eram compatibilizados pela mão invisível do mercado financeiro. O que vale ser discutido é a conscientização de valores sobre a república, estabelecida para uma população fora das elites do poder, e as tentativas para a aplicação desse ato. Ele não poderia ser realizado por meio do discurso, inacessível a um público com um baixo nível intelectual. Deveria ser representado através de sinais bem mais universais e de leitura mais fácil, como imagens, símbolos e a criação de mitos. A importância da criação de um meio de comunicação que atingisse a mais simples das pessoas era necessária para a formulação da imagem do novo regime, cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos.
A elaboração de um imaginário é parte da legitimação de qualquer regime político e é por meio desse canal de comunicação que se podem atingir não somente a mente de uma pessoa, mas também o seu coração. Atingir o coração é atingir as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. Esse imaginário social é constituído por ideologias e utopias que se misturam a uma linguagem simbólica capaz de controlar a opinião e os atos de cada cidadão. O culto a imagem de símbolos e o surgimento de mitos, por possuírem um caráter de leitura menos codificada, tornaram-se elementos poderosos na projeção dos interesses políticos de manipulação em massa.
Para não se tornar uma nação sem memória, uma vertente positivista apoiada por Benjamim Constant visionava uma integração da história através de uma interpretação do passado e do presente, além de uma projeção no futuro, com a construção de monumentos por todo o país. Seus maiores expoentes foram o artista Décio Villares, autor de obras como o monumento dedicado a Benjamim Constant, localizado na Praça da República, e Eduardo de Sá, autor do monumento dedicado a memória de Floriano Peixoto situado na Cinelândia, todos na capital do Rio de Janeiro. Os exemplos citados são discursos que obedecem não somente às idéias políticas ou filosóficas de alguns pensadores, mas provêm uma concepção estética segundo a qual a arte deve ser idealizada a partir da realidade, exaltando o lado afetivo do ser humano e promovendo um culto cívico da família, da pátria e da humanidade.
Sobre a necessidade em se criar mitos, analisaremos a estruturação cultural para a formação de um mártir. A figura do herói representa um símbolo que reflete um grande poder de assimilação no público, tornando-se encarnação das aspirações civis e ponto de referência para a moralidade e unificação popular. Não há um regime que não promova o culto de seus heróis ou não possua um referencial de líderes políticos. Em algumas situações, os heróis surgiram das lutas que precederam a uma nova ordem social, incluindo as lutas armadas ou a realização de feitos relevantes para o engrandecimento da pátria. Em outros, de limitadas abrangências populares como foi o episódio do Restaurante Calabouço, foi necessário um esforço maior de comoção pública que causasse o seu surgimento. O assassinato de um jovem estudante, morto pela polícia em uma manifestação que inicialmente não tinha a intenção de obter uma projeção tão grande, promoveu Edson Luís a essa categoria de salvador da pátria. É nesse contexto de heroísmo que o estudante se encaixa: na falta de um envolvimento real do povo na percepção e assimilação de uma ideologia favorável a causa dos estudantes por meio de uma mobilização simbólica capaz de movimentar toda a sociedade brasileira. Um verdadeiro mártir, de algum modo, deve representar o espírito de luta de um povo. Ele deve responder aos anseios e aspirações coletivas refletindo algum tipo de personalidade ou de comportamento que corresponda a um modelo que seja aceito e respeitado pela população. Não era esse o caso do estudante do Instituto Cooperativo de Ensino. De qualquer maneira, o caso do Restaurante Calabouço teve a sua significância histórica, mas foi preciso a existência de um cadáver, preferencialmente o de um aluno que tivesse sofrido uma morte trágica, para que o mito do herói tomasse forma dentro daquele ambiente de insatisfação política. Indiferente a quem fosse dada a póstuma honra de mártir, bastou o incidente entre os estudantes cariocas e a Polícia Militar para que o Governo Federal adiantasse o processo de criação de uma lei punitiva à insubordinação popular, assustadoramente batizada de AI-5. (CS)

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