quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
Um conto de Natal moderno: o beijo, o cachorro e o sapato
Creio que milhares de pessoas no planeta já conhecem a estória de Ebenezer Scrooge, escrita pelo inglês Charles Dickens e publicada na semana anterior ao Natal de 1843. O Natal do Sr. Scrooge é um conto natalino que narra a fábula de um homem rico, e de idade avançada, tido como muito avarento, que detestava a época do Natal. Solitário, Scrooge é um personagem que, no papel de patrão, não desejava conceder ao seu melhor funcionário, Bob Cratchit, apenas um dia de folga do trabalho às vésperas natalinas. A sua vida passa a mudar quando, pouco antes da famosa confraternização católica, recebe a visita de um morto, seu finado amigo e sócio, Jacob Marley. Marley volta do além túmulo para relatar ao detestável ancião sobre o que encontrou do outro lado da vida e, arrependido do modo como foi a sua existência terrena, revela ao ex-amigo como salvar a própria alma. O inusitado espectro avisa a Ebenezer que logo ele receberá a visita de três espíritos e que deverá avaliar, a partir dessa manifestação, a sua conduta, já que para ele o fim também se aproximava. Os três fantasmas, um a cada seqüência, se apresentam a Scrooge como materializações dos espíritos natalinos, do passado, do presente e do futuro. A intenção é que Ebenezer Scrooge mude sua postura e dê importância ao valor da solidariedade na época de Natal. É uma obra admirável, principalmente porque nos remete a uma auto-análise sobre nossas próprias posturas perante aos outros.
Em uma visita surpresa a Bagdá, no último domingo, dia 14, o presidente norte-americano George W. Bush foi surpreendido por uma inusitada recepção. Há apenas 37 dias de entregar o cargo ao presidente eleito Barack Obama, o chefe da Casa Branca discursava durante uma coletiva sobre a ocupação militar no país, dizendo que “a guerra foi difícil, mas necessária para proteger os EUA e dar ao Iraque a esperança de um futuro pacífico”, defendendo em seu discurso a invasão do território iraquiano e a derrubada do regime ditatorial do ex-presidente Saddam Hussein. Bush participava de uma cerimônia simbólica de assinatura de um novo pacto de segurança entre EUA e Iraque, quando, no momento em que falava aos jornalistas, ao lado do primeiro-ministro Nuri Al Maliki, um jovem repórter entrou para a posteridade.
“Este é seu beijo de despedida, cachorro!”
Durante a cerimônia que, com certeza, foi a sua última apresentação no território iraquiano como presidente dos Estados Unidos, W. Bush foi interrompido por um par de sapatos oriundos de sua pequena platéia. Imagens de TVs revelaram quando o jornalista Muntazer Al-Zaidi, correspondente do canal de televisão Al-Baghdadia, de propriedade iraquiana e com sede em Cairo, no Egito, se levantou e disse a célebre frase: “este é o seu beijo de despedida, cachorro! Isso é pelas viúvas, pelos órfãos e aqueles que foram mortos no Iraque”, antes de arremessar os sapatos no presidente americano. Contido por seguranças, Al-Zaidi foi detido e provavelmente será processado pela justiça do país por desacato, podendo ser condenado a pelo menos dois anos na prisão se for julgado por insulto a um líder estrangeiro e ao premiê iraquiano, que estava ao lado de Bush no momento do incidente. Segundo relatos, o jornalista foi submetido a exames para detectar a presença de álcool e drogas, podendo ser investigado, ainda, sobre a possibilidade de ter aceitado uma compensação financeira para praticar o ato. Apesar do intuito, George W. Bush não foi atingido pelo calçado, desviando-se comicamente ao abaixar-se e levantar-se como um ator em uma cena pastelão.
Sobre códigos e significâncias, os sapatos podem representar vários sentidos. A crendice popular ocidental confere ao objeto o poder de atrair boas energias e manter o equilíbrio financeiro, social e físico. Diz-se, segundo a superstição, que quando o seu solado está para cima prenuncia, ou está chamando, a morte para o dono. Quando colocado nas janelas durante a noite de Natal, representa um dos locais onde se podem depositar os presentes recebidos. No século XVI, em alguns países europeus, era um símbolo de autoridade. Na cultura árabe, atirar os sapatos em alguém é uma ofensa quase imperdoável, uma atitude de extremo desprezo contra uma pessoa. Significa que ela é menos que um calçado, que fica sempre no chão e sujo. Segundo os costumes iraquianos, mostrar a sola de um sapato equivale a dizer que a pessoa é inferior à sujeira do calçado. Arremessá-los é ainda mais ultrajante. Ser chamado de cachorro piora ainda mais a situação. A imagem de um cão, associada à de um homem, o iguala a um animal que vive perambulando entre a miséria, doenças e morte.
Usar os sapatos como forma de liberdade de expressão pode parecer estranho, ainda mais vindo de um jornalista, mas deve ser compreendido. O fato simboliza a frustração de milhares de iraquianos com a deterioração das condições do país e com a morte de mais de um milhão de civis por causa da invasão americana. O gesto de Zaidi é um retrato amargo da participação dos EUA no Iraque, principalmente quanto à imagem de Bush, considerado um dos presidentes mais impopulares da história americana. É mais um episódio que demonstra a falta de credibilidade e legitimidade das ações aliadas no país. Logo após a prisão de Al Zaidi, milhares de iraquianos foram às ruas exigindo a liberação do repórter. Muitos árabes por todo o Oriente Médio elogiaram o ato e até consideraram a ação como de extrema bravura. Bush ainda tentou minimizar o incidente, dizendo que a atitude do repórter fora um ato isolado e não representa o verdadeiro sentimento do povo iraquiano. Cômico, ainda brincou com a situação, dizendo que o sapato era de número 10, o que equivale ao 42 brasileiro. Em 2003, os iraquianos atacaram da mesma forma a estátua do ex-ditador Saddam Hussein, satisfeitos com a derrubada do regime do antigo governante.
O presidente norte-americano disse que, apesar de Hussein não ter tido participação com os ataques terroristas de 11 de setembro contra os Estados Unidos, a decisão de derrubá-lo não pode ser vista fora do contexto dos ataques. "Num mundo onde terroristas armados apenas com estiletes conseguiram matar quase três mil pessoas, os Estados Unidos tiveram de decidir se poderíamos tolerar um inimigo que agia deliberadamente, que apoiava o terrorismo e que agências de inteligência ao redor do mundo acreditavam ter armas de destruição em massa", disse Bush, referindo-se a relatórios de inteligência que, depois, provaram-se falsos.
A primeira viagem de George W. Bush ao Iraque aconteceu em novembro de 2003, poucos meses depois da invasão liderada pelos EUA, ocorrida em março. Bush ainda voltou ao território iraquiano em 2006 e em 2007, ano em que também se reuniu com algumas lideranças tribais que combatem junto com o governo a rede terrorista Al-Qaeda no país. Atualmente, há cerca de 150 mil soldados americanos no Iraque e 32 mil no Afeganistão. Mais de 4.200 americanos já morreram no conflito e foram gastos aproximadamente US$ 576 bilhões desde o início da invasão. (CS)
Imagem creditada a Associated Press
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Um comentário:
Excelente artigo. Muito bom e completo.
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