segunda-feira, 7 de julho de 2008

Edson Luís e o Calabouço ou o estudo de um mártir a partir de sua significância quanto corpo


Sobre o ano de 1968, este foi marcado pelos movimentos estudantis em todo mundo. As autoridades buscavam conter os vários protestos dos estudantes através do uso da força e de mecanismos de repressão. No Brasil, o governo manteve uma linha dura com punições, cassações, suspensão de direitos políticos, prisões, espancamentos, torturas, desaparecimentos e ocultação de cadáveres, exílio e várias outras atrocidades contra o direito civil. Durante a Guerra Fria havia uma enorme indução norte-americana sobre a sociedade brasileira. Essa influência foi percebida em diversas áreas das esferas sociais, como na música, cinema, na alimentação e no estilo de vida de alguns brasileiros. Mas foi na educação que a ingerência dos Estados Unidos acabou por provocar os estudantes universitários, liderados pelo diretório estudantil da UNE. Segundo os dirigentes da União Nacional dos Estudantes, na época, o governo brasileiro tinha a intenção de modificar, gradativamente, todas as universidades federais em regime de fundação. Essas mudanças foram impostas pela Agência de Desenvolvimento dos Estados Unidos (USAID) em cumprimento aos acordos feitos pelo Brasil com a agência. A não concordância com o que fora acertado pelo Ministério da Educação e Cultura e o órgão norte-americano foi a principal reivindicação dos estudantes naquele momento. Após o golpe, o novo governo instaurado pelos militares promulgou uma lei com o objetivo de sufocar qualquer manifestação estudantil. A "Lei Suplicy", do então Ministro da Educação Flávio Suplicy de Lacerda, proibia a participação dos estudantes em questões políticas, suprimindo a liberdade de organização. Na tentativa de manter o controle sobre as ações dos estudantes, a polícia não hesitava em agir com autoritarismo e violência.
Em março de 1968, a polícia invadiu o restaurante do Calabouço no Rio de Janeiro. O restaurante era mantido pelo Governo para atender estudantes carentes e, naquele dia, um pequeno grupo de estudantes preparava um protesto contra as más condições em que se encontrava o local. Durante a operação, ocorreu um princípio de tumulto entre a polícia e os manifestantes. O estudante do ensino médio Edson Luis Lima Souto, de 18 anos, morreu vítima de um tiro disparado pela polícia. No enterro de Souto, aproximadamente 50.000 pessoas se concentraram em frente à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. A urna, coberta com a bandeira do Brasil, saiu em cortejo pelas ruas da cidade em meio a um clima de revolta que se expandiu pelo resto do país.
Rememorando quatro décadas após a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, uma parceria entre a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, a Prefeitura do Rio de Janeiro, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) inauguraram uma estátua na Praça Ana Amélia, entre a Avenida Churchill e a Rua Santa Luzia, em homenagem ao estudante morto no período da ditadura militar. O jovem Edson foi o primeiro estudante morto de uma seqüência de várias outras vítimas da repressão no Brasil. A sua morte desencadeou um processo de comoção nacional e repúdio à forma truculenta como ocorreu o fato. O mito a ser desconstruído é o uso da imagem do aluno como mártir e a significância da sua morte para a sociedade.

O caso Edson Luís

Paraense nascido em Belém, Edson Luís mudou-se para o Rio de Janeiro para cursar o antigo segundo grau no Instituto Cooperativo de Ensino. A escola funcionava nas dependências do Complexo do Calabouço que, além do restaurante onde ocorreu o homicídio, possuía um teatro e uma policlínica. Ao seu redor funcionavam um pequeno comércio de prestação de serviços, com barbearias, alfaiates e lavanderias. De família humilde, o jovem aluno participava naquele fatídico dia 28 de março de 1968 de uma manifestação contra as condições de funcionamento do restaurante. Segundo ex-integrantes da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço, Edson Luís estava distante de ser uma liderança no movimento estudantil. Era apenas um rapaz que falava pouco e colaborava na fabricação de cartazes para a manifestação daquele dia. Um garoto que sonhava cursar a universidade e proporcionar uma vida melhor para a sua família.
O Restaurante Central dos Estudantes foi inaugurado em 1951 na antiga sede da UNE na Praia do Flamengo, mas encerrou os seus dias em um endereço próximo ao Aeroporto Santos Dumont. Era vinculado à Divisão Extra-Escolar do Ministério da Educação e ao Serviço de Alimentação de Previdência Social e administrado pela União Metropolitana dos Estudantes (UME). O nome sub-social é uma alusão à possibilidade de que naquele local tenha existido uma prisão para escravos, além de uma menção ficcional de um lugar marginalizado dentro de um sistema opressor. O Calabouço era um restaurante estudantil que oferecia refeições a baixo custo para estudantes carentes do Rio de Janeiro. Proporcionando diariamente um grande fluxo de pessoas, o local foi palco de manifestos e pedidos de melhorias na educação escolar do país. Algumas dessas intervenções criticavam diretamente o regime político implantado pelo novo governo e as restrições impostas ao movimento estudantil.
No dia 28 de março, um grupo de estudantes organizava uma passeata que deveria sair do restaurante do Calabouço em protesto a qualidade da comida e ao aumento no valor da refeição. A manifestação deveria ocorrer no fim da tarde, mas logo foi dispersa pela ação da polícia. Durante esse primeiro confronto, alguns alunos se esconderam nas dependências do restaurante e tentavam revidar contra-atacando com pedaços de paus e pedras. A inesperada retaliação forçou o efetivo policial a recuar para poder traçar uma nova formação para controlar o tumulto. A rua ficou propriamente deserta em meio a uma angustiante paz aparente. Iniciou-se novamente o conflito quando tiros foram disparados próximos ao Edifício da Legião Brasileira de Assistência. Os policiais, temendo que estudantes atacassem a embaixada norte-americana, resolveram invadir o Complexo do Calabouço e acabar de vez com aquela situação que se tornava fora de controle. Testemunhas afirmaram aos jornais da época que Edson Luís acabara de jantar e de que segurava uma bandeja nas mãos quando foi atingido por um golpe de cassetete no ombro. Durante a invasão, o comandante da tropa que fez a incursão no Complexo, Aloísio Raposo, teria sido ferido com uma pedrada e revidou atirando contra os seus agressores, atingindo o estudante com um único tiro certeiro no peito. Outros disparos foram ouvidos e mais pessoas feridas foram socorridas em hospitais, mas Edson morreu na hora. Poderia ser qualquer um, mas foi dado a ele a glória de morrer como mártir de um motim, já que o movimento não mudou em nada a situação do restaurante a não ser declarar definitivamente o seu fechamento e desencadear uma ação mais enérgica do regime contra o movimento estudantil.
O impacto de um corpo dentro daquele universo caótico de sentidos ideológicos foi a nova oportunidade oferecida a sociedade estudantil de reivindicar algo contra o sistema, de ter uma nova bandeira para lutar mesmo contra um oponente que o representa federativamente e, numericamente e belicosamente, muito superior às possibilidades de defesa que poderiam idealizar. A luta entre Davi e Golias desta vez deu-se pela lógica: venceu o gigante.
Várias foram as manifestações populares em todo o país cultuando o novo símbolo da resistência estudantil: o corpo de um adolescente que saiu de casa para iniciar uma nova etapa em sua vida; que trabalhava e estudava na esperança de ajudar a mãe a viver melhor. Edson Luís nunca teve a menor identificação de um líder nato ou posicionava-se como um. Nunca quis ser um herói, ainda mais desses que são criados a partir da extinção de sua pessoa. Era apenas mais um garoto que buscava melhorar sua condição social através da obtenção de reconhecimentos educacionais. Apenas mais um estudante dentre os milhares de alunos que freqüentavam o restaurante do Calabouço. Após a constatação de um cadáver, a espetacularização da vida tomou forma com o surgimento de novos personagens que manipulariam aquele episódio. Todos queriam demonstrar o seu repúdio contra o assassinato de um jovem estudante, indiferente se o conheciam ou não. A morte de Edson Luís foi o primeiro incidente que sensibilizou a opinião pública para a luta estudantil.

O decorrer dos dias

Temendo que a polícia desaparecesse com o corpo do estudante baleado, os manifestantes não permitiram que ele fosse retirado para o Instituto Médico Legal e o carregaram em passeata para a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, onde o artefato fúnebre foi velado. A própria necropsia foi realizada no local sob o cerco armado da Polícia Militar e de agentes do DOPS, e o seu atestado de óbito emitido ali mesmo. No período que compreendeu o velório e a missa de ressurreição promovida na Igreja da Candelária, várias manifestações foram realizadas pelo país. Propriamente o Estado do Rio de Janeiro parou no dia do sepultamento. Os cinemas localizados na Cinelândia anunciavam três exibições com títulos alusivos ao fato: A noite dos generais, À queima-roupa e Coração de Luto. Centenas de cartazes foram colados com frases de insurgência, tais como: “Mataram um estudante!” E se fosse o seu filho?” ou “Os velhos no poder e os jovens no caixão!”. Edson Luís foi enterrado como um mártir ao som do hino nacional brasileiro, homenageado quase como um ex-combatente de guerra, desses que morrem defendendo o seu país das forças opressoras que o sufocam.
O clima ainda tenso permaneceu até o dia 2 de abril, quando foi realizada uma celebração pela morte do estudante na Candelária. Ao fim da cerimônia, ocorrida durante a manhã, as pessoas que deixavam o recinto foram surpreendidas pela Cavalaria da Polícia, cercadas e atacadas a golpes de sabres e cassetetes. Várias ficaram feridas e algumas detidas pela corporação. Uma outra missa estava marcada para ser celebrada no mesmo dia, porém os militares haviam determinado a sua proibição e se posicionaram para reprimi-la sob qualquer forma. Do lado de fora da Matriz foram mantidas três fileiras de soldados a cavalo, mais o apoio do Corpo de Fuzileiros Navais e vários agentes do DOPS.
Apesar de não terem se envolvidos diretamente até aquele momento, alguns padres resolveram intervir em prol de seus fiéis. Sem temer uma retaliação futura, o vigário-geral do Rio de Janeiro, Dom Castro Pinto, se negou a proibir a realização da missa noturna. Esperando uma nova investida militar contra a população presente ao término da celebração, um ato de extrema bravura e coragem foi tomado pelos párocos presentes à cerimônia. Posicionando-se em duas correntes mantidas apenas pelas mãos dadas, formaram um enorme corredor por onde passaram os quase 600 fiéis que foram ao ato religioso. Os padres mantiveram-se presentes na Rua Rio Branco até que o último fiel passasse, sob os olhares conturbados dos policiais. Apesar do esforço, foi inevitável um novo confronto nas imediações da Cinelândia entre manifestantes e os cavalarianos.
A morte do estudante ainda gerou uma grande passeata no Rio de Janeiro, em 26 de junho. A Passeata dos Cem Mil no centro da cidade, mais especificamente na Cinelândia, foi a maior e mais importante manifestação de protesto ocorrida no país desde a instalação do regime ditatorial no Brasil. Promovida pelo movimento estudantil, a marcha contou com a presença de intelectuais, artistas, operários e grande parte da população carioca. Suas principais reivindicações foram o restabelecimento das liberdades democráticas, a suspensão da censura à imprensa e um maior apoio ao desenvolvimento da educação no país.

A necessidade de se criar mártires

Você já reparou quantas estátuas e monumentos existem espalhados pelo país? Já procurou saber sobre quem foi aquele personagem esculpido e mantido ali, parado, em uma praça no qual você nem retém o seu tempo de parar ou mesmo contemplá-lo através de um breve olhar? Já pensou porque somos árduos patrióticos ao defender o nome de nosso país em qualquer esporte ou situações que remetam a uma imagem positiva, mas totalmente carentes de um regime político que realmente igualasse as condições de sobrevivência de cada um de nós, nascidos ou não nessa nação?
Vamos ponderar que um instrumento clássico para legitimar um regime político é a ideologia e a justificação racional da organização do poder. Como ponto de partida, voltaremos a um período posterior a saída de Dom Pedro II do Brasil. Com a proclamação da República, três correntes filosóficas disputavam a definição ideológica de governo para o novo regime que se instaurava com o fim da monarquia. Existiam os defensores do liberalismo à americana, os jacobinos à francesa e os positivistas. Durante algum tempo, as três ideologias se combateram nos anos que procederam ao início do processo de transição política no Brasil. Acabou prevalecendo a ideologia de uma nação mantida sob um regime liberalista de governo: uma sociedade composta por indivíduos autônomos cujos interesses eram compatibilizados pela mão invisível do mercado financeiro. O que vale ser discutido é a conscientização de valores sobre a república, estabelecida para uma população fora das elites do poder, e as tentativas para a aplicação desse ato. Ele não poderia ser realizado por meio do discurso, inacessível a um público com um baixo nível intelectual. Deveria ser representado através de sinais bem mais universais e de leitura mais fácil, como imagens, símbolos e a criação de mitos. A importância da criação de um meio de comunicação que atingisse a mais simples das pessoas era necessária para a formulação da imagem do novo regime, cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos.
A elaboração de um imaginário é parte da legitimação de qualquer regime político e é por meio desse canal de comunicação que se podem atingir não somente a mente de uma pessoa, mas também o seu coração. Atingir o coração é atingir as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. Esse imaginário social é constituído por ideologias e utopias que se misturam a uma linguagem simbólica capaz de controlar a opinião e os atos de cada cidadão. O culto a imagem de símbolos e o surgimento de mitos, por possuírem um caráter de leitura menos codificada, tornaram-se elementos poderosos na projeção dos interesses políticos de manipulação em massa.
Para não se tornar uma nação sem memória, uma vertente positivista apoiada por Benjamim Constant visionava uma integração da história através de uma interpretação do passado e do presente, além de uma projeção no futuro, com a construção de monumentos por todo o país. Seus maiores expoentes foram o artista Décio Villares, autor de obras como o monumento dedicado a Benjamim Constant, localizado na Praça da República, e Eduardo de Sá, autor do monumento dedicado a memória de Floriano Peixoto situado na Cinelândia, todos na capital do Rio de Janeiro. Os exemplos citados são discursos que obedecem não somente às idéias políticas ou filosóficas de alguns pensadores, mas provêm uma concepção estética segundo a qual a arte deve ser idealizada a partir da realidade, exaltando o lado afetivo do ser humano e promovendo um culto cívico da família, da pátria e da humanidade.
Sobre a necessidade em se criar mitos, analisaremos a estruturação cultural para a formação de um mártir. A figura do herói representa um símbolo que reflete um grande poder de assimilação no público, tornando-se encarnação das aspirações civis e ponto de referência para a moralidade e unificação popular. Não há um regime que não promova o culto de seus heróis ou não possua um referencial de líderes políticos. Em algumas situações, os heróis surgiram das lutas que precederam a uma nova ordem social, incluindo as lutas armadas ou a realização de feitos relevantes para o engrandecimento da pátria. Em outros, de limitadas abrangências populares como foi o episódio do Restaurante Calabouço, foi necessário um esforço maior de comoção pública que causasse o seu surgimento. O assassinato de um jovem estudante, morto pela polícia em uma manifestação que inicialmente não tinha a intenção de obter uma projeção tão grande, promoveu Edson Luís a essa categoria de salvador da pátria. É nesse contexto de heroísmo que o estudante se encaixa: na falta de um envolvimento real do povo na percepção e assimilação de uma ideologia favorável a causa dos estudantes por meio de uma mobilização simbólica capaz de movimentar toda a sociedade brasileira. Um verdadeiro mártir, de algum modo, deve representar o espírito de luta de um povo. Ele deve responder aos anseios e aspirações coletivas refletindo algum tipo de personalidade ou de comportamento que corresponda a um modelo que seja aceito e respeitado pela população. Não era esse o caso do estudante do Instituto Cooperativo de Ensino. De qualquer maneira, o caso do Restaurante Calabouço teve a sua significância histórica, mas foi preciso a existência de um cadáver, preferencialmente o de um aluno que tivesse sofrido uma morte trágica, para que o mito do herói tomasse forma dentro daquele ambiente de insatisfação política. Indiferente a quem fosse dada a póstuma honra de mártir, bastou o incidente entre os estudantes cariocas e a Polícia Militar para que o Governo Federal adiantasse o processo de criação de uma lei punitiva à insubordinação popular, assustadoramente batizada de AI-5. (CS)

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